Uma noite que demorou 97 anos para chegar e, desde então, jamais acabou. Data em que libertamos o grito continental que há tanto teimava em engasgar nossas gargantas. Feliz a América, que encontrou em nosso camisa 9 o melhor capitão de sua história. Feliz, também, o povo vermelho, que a partir do Gigante coloriu todo o continente em alvirrubro. Há 14 anos, vivíamos o Dia Sem Fim. Relembre a campanha colorada na Libertadores de 2006!
Para pegar ritmo
Era grande a expectativa da torcida alvirrubra em relação ao retorno do Inter à Libertadores. Afastado do principal torneio de clubes do continente desde 1993, o Colorado precisaria superar, além da aparente inexperiência na competição, o pessimismo deixado pelo frustrante desempenho de sua última participação, quando foi eliminado nos grupos. Na busca por grandes resultados, todavia, também sobravam motivos para o otimismo.
Dentro de campo, o Inter fizera por merecer o título do Brasileirão de 2005. Além disso, o elenco somava duas participações de destaque nas últimas edições da Sul-Americana. Em 2004, o Colorado chegou a eliminar o Júnior de Barranquilla, nas quartas, e somente foi eliminado, nas semis, para o campeão Boca.
Um ano depois, o Clube do Povo sucumbiria, uma vez mais, para o time xeneize, desta vez lutando por vaga entre as quatro melhores equipes do continente. Cascudos em nível continental, portanto, e embalados por grande fase nacional, os comandados de Abel Braga chegaram ao grupo 6 da Libertadores da América.
Inter e Boca travaram grandes duelos na primeira década do século passado/Foto: Marcelo Campos
O Colorado estreou na Libertadores de 2006 no dia 16 de fevereiro. Diante de 35 mil pessoas, o Clube do Povo enfrentou o Maracaibo, da Venezuela, fora de casa. Ceará, aos três minutos do segundo tempo, abriu o placar em bonito chute da entrada da área. O gol do lateral-direito, inclusive, criaria, em breve, superstição ímpar entre a Maior e Melhor Torcida do Rio Grande. O tento, contudo, não foi o único da noite: já nos últimos instantes, Maldonado empatou para os locais e impediu o triunfo alvirrubro.
A vitória que escapou na estreia chegou na semana seguinte. Apoiado por um Beira-Rio lotado, o Inter deu show para atropelar o Nacional-URU, tricampeão da Libertadores, por 3 a 0. Michel e Fernandão, ainda no primeiro tempo, garantiram boa vantagem para o intervalo, resultado que foi ampliado, já nos últimos minutos da etapa final, por Rubens Cardoso.
Abrindo o mês de março, no dia 8 o Inter viajou até a Cidade do México para encarar o Pumas. Como de costume naquele início de campanha continental, as redes balançaram minutos antes dos 45 – desta vez, da primeira etapa. López, de cabeça, garantiu vitória parcial do time da casa antes do intervalo. Na volta dos vestiários, porém, Rentería mudou radicalmente o cenário da partida e, com um gol e uma assistência, para Fernandão, garantiu o posto de protagonista do confronto. Por 2 a 1, o Clube do Povo vencia e mantinha a liderança do grupo.
Invencibilidade nos grupos
A partida mais emocionante do Inter na fase de grupos ocorreu na noite do dia 22 de março. Tomado por mais de 42 mil pessoas, o Beira-Rio, como de costume, fez a diferença, e brilhou na histórica virada sobre o Pumas. A importância da torcida no triunfo fica clara na súmula da partida, afinal de contas, aos 34 do primeiro tempo o Clube do Povo perdia por 2 a 0.
Fernandão comemora o segundo gol colorado na noite/Foto: Jefferson Bernardes
“Foi fantástico. Ninguém arredou o pé, ninguém parou de incentivar. Os jogadores se sentiram orgulhosos de fazer parte deste clube. O torcedor sentiu que o resultado era injusto e incentivou o tempo todo. Sofremos, mas tivemos a competência necessária para virar o resultado”
Foto: Jefferson Bernardes
Time e torcida, juntos, festejaram a inesquecível noite 22 de março
Contínuo ao segundo gol dos mexicanos, a torcida respondeu com cantoria ainda mais intensa para o time colorado. Sob tamanho apoio, o Inter descontou, logo aos 36, com Michel, em gol brigado, batalhado e com a cara da Libertadores. Na etapa final, Tinga descolou, aos 7, desarme magnífico, e lançou, na direita, o autor do primeiro tento vermelho. Rasteiro, ele cruzou para Fernandão, que tirou proveito da falha do goleiro para empatar. A virada, merecida, chegou aos 30. Gabiru, recebendo assistência de cabeça do Eterno Capitão, fez explodir, também com a nuca, mas de peixinho, as estruturas do Gigante.
Data em que comemorou 97 anos de vida, no dia 4 de abril de 2006 o Clube do Povo visitou o Nacional, em Montevidéu. Desfalcado de alguns nomes, incluindo Fernandão, o Colorado segurou positivo empate sem gols no Parque Central, resultado que garantiu a manutenção da liderança, agora com 11 pontos, e praticamente assegurou vaga na fase de oitavas de final da América.
Finalizando a fase de grupos, o Inter recebeu, no 18º dia de abril, o Maracaibo. Escalado com novidades, a exemplo de Jorge Wagner, que retomou a titularidade na lateral-esquerda, e Rafael Sobis, devidamente recuperado de lesão, o time de Abel Braga não deu chance aos visitantes. Após Adriano Gabiru marcar o único gol da etapa inicial, Bolívar, Michel e Rentería transformaram a vitória em goleada. Em grande estilo, portanto, o Clube do Povo, dono da segunda melhor campanha da Libertadores, avançou, invicto e com 14 pontos, às oitavas.
Velho conhecido, novo final
Atualmente, os confrontos de oitavas de final da Libertadores são decididos através de sorteio. Em 2006, a lógica era outra. À época, a fase era disputada entre os melhores líderes contra os segundo colocados de pior campanha.
Segundo melhor time da fase de grupos, o Inter, que avançou como líder da chave 6, enfrentou nas oitavas, atendendo ao regulamento, o penúltimo segundo colocado. Curiosamente, o adversário foi o Nacional-URU, time mais do que conhecido. Apesar do positivo retrospecto recente para o Alvirrubro, todavia, o rival despertava grande receio na torcida vermelha
Desbravador gaúcho na Libertadores, o Clube do Povo disputara, exatamente contra o ‘Bolso’, a decisão do torneio em 1980. Derrotado na ocasião, o Colorado encarava, 26 anos depois, excelente oportunidade de vingar o revés passado e superar o fantasma charrua que pairava sobre as caminhadas continentais do escrete oriundo da Padre Cacique.
Iniciada em território uruguaio, a fase de oitavas de final viu brilhar Rentería. Mais colombiano dos sacis, o atacante, que já construíra excelente trajetória na fase de grupos do torneio, foi o grande nome do duelo disputado no Parque Central. Após um primeiro tempo de boas chances para os dois lados, encerrado com o 1 a 1 no placar, empate alcançado pelo Inter já nos instantes finais graças a precisa falta de Jorge Wagner, o dançarino Wason foi alçado a campo, logo no retorno dos vestiários, na vaga de Rafael Sobis. Talismã, precisou de apenas 18 minutos para virar, e o fez com estilo: acionado por Fernandão, aplicou, com a direita, um balãozinho no marcador e, sem deixar a bola cair, soltou um canhotaço, que encobriu o arqueiro Bava. Festejada, a vitória por 2 a 1, somada a empate sem gols na volta, no Beira-Rio, classificou o Inter para as quartas de final!
Uma fase, dois meses
O Clube do Povo teve uma semana de folga entre a classificação para as quartas e a abertura do duelo contra a LDU. Em Quito, capital equatoriana, os comandados de Abel Braga saíram na frente com gol de Jorge Wagner. Na etapa final, porém, a altitude de quase 3.000 metros fez a diferença. Benéfica ao time da casa, desgastou o Colorado e garantiu a virada dos locais. No Beira-Rio seria preciso, no mínimo, vencer por 1 a 0. Difícil, o desafio ficou ainda maior somado à ansiedade que precisaria ser superada, consequência dos mais de dois meses que separavam o revés na ida do embate de volta.
A América estava prestes a ser liberta/Fotos: Jefferson Bernardes
Dia 19 de julho de 2006. Após meses de fé, mobilização e treinos intensos, o Gigante, lotado, sediou a disputa dos últimos 90 minutos por vaga nas semifinais continentais. Obrigado a vencer, o Inter até criou boas oportunidades, mas foi incapaz de vazar as redes rivais no primeiro tempo. De volta do intervalo, porém, o ritmo colorado foi amplificado. Prova da intensidade? O primeiro gol, de Sobis, aos 6. Rentería, já aos 41, ampliou. Clemer, nos acréscimos, brilhou. Estávamos entre os quatro melhores das Américas!
Depois de 26 anos, a final
No Clube do Povo, os anos 1980 não ficaram conhecidos como ‘década de prata’ por acaso. Acostumado ao gosto do ouro, recorrente no início da era Beira-Rio, o Inter sofreu com frequentes batidas na trave, ocorridas também em âmbito continental.
Avassaladora, a campanha alvirrubra na Libertadores de 2006 ofereceu ao Colorado, nas oitavas, a primeira oportunidade de superar um trauma passado. Nas semifinais, surgiu a segunda. Desta vez, contra um adversário distinto, mas dentro de roteiro idêntico.
Em 1989, o Colorado perdera a vaga na decisão continental para os alvinegros paraguaios do Olímpia. Traumático, o episódio retornou à memória da torcida vermelha 17 anos depois. Para chegar à final de 2006 o Inter teria de superar, nas semis, o Libertad. Rival também do Paraguai, também preto e branco e também mandante, na partida de ida, no Defensores del Chaco.
Fora de casa, o Clube do Povo empatou sem gols. No Gigante, 50 mil pessoas empurraram escalação decidida a entrar para a história. Os protagonistas do time, naquela noite, foram Alex e Fernandão, que brilharam em nova etapa final decisiva. Pela segunda vez na história, o gigante da Padre Cacique era finalista da Libertadores.
Foto: Jefferson Bernardes
Foto: Jefferson Bernardes
Uma semana sem fim
Morumbi lotado. Inter, de grande campanha no Brasileirão passado, contra São Paulo, vencedor do último Mundial de Clubes. Duelo gigante, entre os dois atuais líderes do Campeonato Nacional. A final de 2006 foi, sem sombra de dúvidas, uma das maiores da história do principal torneio de clubes da América.
Ídolo: Rafael Augusto Sobis, um gigante na rica história do Internacional
Morumbi lotado. Cerca de 70 mil pessoas apoiando o time da casa, atual campeão do mundo, e que sonhava com o bicampeonato consecutivo da América. Duelo de duas das melhores campanhas da Libertadores. Confronto dos atuais líderes do Brasileirão. Os ingredientes, não se pode questionar, estavam postos para uma noite memorável. Tolos? Somente os que esperavam cozinhar o Inter no caldeirão paulista. Há 14 anos, vivíamos uma das maiores noites de nossa história.
Pula que é gol do Sobis, só pode ser o Sobis/Foto: Jefferson Bernardes
Duelo grandioso
De fato, o adversário exigia respeito. Tricampeão da Libertadores, em 2006 o São Paulo fechou a primeira fase com a quarta melhor campanha do torneio. Nas oitavas, superou o Palmeiras com o agregado de 3 a 2. Logo em seguida, eliminou, no Morumbi, os argentinos do Estudiantes. A classificação para as semis veio nas cobranças de pênaltis, após vitória por 1 a 0 no tempo normal.
Para chegar à finalíssima, o Tricolor, que contava com a estrelada geração de Rogério Ceni, Lugano, Josué, Mineiro, Aloísio e Ricardo Oliveira, ainda bateu o Chivas de Guadalajara. Na casamata, a equipe paulista tinha o comando de Muricy Ramalho, técnico colorado na temporada anterior e, portanto, grande conhecedor do elenco alvirrubro.
Em dezembro, São Paulo conquistaria o Brasil/Foto: Site São Paulo
“Com todo o respeito ao São Paulo, o Inter também é uma grande equipe!”
Bolívar, classificado para a final
O reconhecimento ao bom momento rival, todavia, não significava pessimismo. Muito menos covardia. Dono da segunda melhor campanha da fase de grupos da Libertadores, o Clube do Povo construiu caminhada maiúscula no torneio continental, à altura do que cobra o manto vermelho. Diante do Nacional-URU, equipe que derrotara o Inter na decisão do campeonato em 1980, o Colorado exorcizou seu primeiro fantasma na escalada rumo ao título.
Após eliminar os uruguaios do Parque Central em confronto marcado por pintura inesquecível de Rentería, o Inter encarou, nas quartas de final, duplo desafio. Dentro de campo, a LDU, base da Seleção do Equador, buscava fazer história a nível continental. Fora das quatro linhas, a ansiedade tirava o sono do povo colorado. Entre a partida de ida, vencida pelos locais, em Quito, e o duelo de volta, disputado no Beira-Rio, mais de dois meses, e uma Copa do Mundo, foram vividos. Obstáculos grandiosos, mas inferiores ao Gigante, que garantiu a classificação para as semis. O último rival no caminho até a decisão foi o Libertad, derrotado, depois de empate sem gols no Paraguai, por 2 a 0no templo da Padre Cacique.
“A história não está feita ainda. Temos que buscar o título”
Fernandão após vitória sobre o Libertad
Pré-jogo de mistério
O Colorado embarcou para São Paulo no sábado 5 de agosto, véspera de confronto contra o Santos, válido pela 15ª rodada do Brasileirão. Disputada apenas quatro dias após o Inter garantir vaga na final da Libertadores, a jornada em terras paulistas contou com uma escalação alternativa do Clube do Povo, que abriu o placar com Iarley, mas sofreu a virada, apesar de boa atuação, nos instantes finais do segundo tempo. O grande ponto positivo do embate foi o retorno de Tinga, recuperado de lesão sofrida no dia 19 de julho, data do duelo de volta contra a LDU. O meio-campista, inclusive, criou a jogada do tento vermelho.
“A gente foi minado com muitas faltas na frente da área, mas não quero me apegar nisso, porque temos uma situação muito importante na quarta-feira. Fico triste pela derrota, mas feliz porque consegui me movimentar bem e posso jogar na quarta-feira.”
Tinga após o duelo contra o Santos
A Baixada Santista seguiu como casa do Colorado nos dias seguintes ao duelo. No CT do Santos, Abel Braga comandou duas atividades fechadas para a imprensa, rodeada de mistérios. Se o retorno de Tinga era provável, por outro lado Alex, com dores no púbis, era dúvida. Autor do primeiro gol marcado pelo Inter na partida decisiva contra o Libertad, o camisa 24 desempenhava papel fundamental no time alvirrubro, alternando com Jorge Wagner entre a ala-esquerda e a armação. Élder Granja, com lesão muscular, também integrava a delegação, mas sua presença dentro de campo era tida como ainda mais complicada.
Eram muitas, assim, as dúvidas que rodeavam a nominata alvirrubra. Na direita, Ceará, que já vinha atuando no lugar de Granja, correspondia à maior certeza. Alex, ao mesmo tempo, passava longe de ter substituto definido. Caso Abel optasse por formação mais conservadora, poderia escolher Índio para o lugar do meio-campista, armando a equipe com três zagueiros e oferecendo maior liberdade a Tinga.
Inter, de Sobis, ajeitou os últimos detalhes no CT do Santos/Foto: Jefferson Bernardes
Outra alternativa residia em Iarley, camisa 10 que vinha somando grandes exibições no Brasileirão. A vocação ofensiva do comandante vermelho também suscitava expectativas acerca da escalação de Michel ou Rentería, avantes que poderiam formar o ataque com Sobis, passando Fernandão para o meio. Com a cabeça repleta de pequenas interrogações, ínfimas se comparadas à enorme motivação que carregavam, cerca de 3,5 mil colorados e coloradas encararam os 1109 quilômetros que separam as capitais de Rio Grande e São Paulo.
Era hora de fazer história. Era hora de soltar o libertador grito que estava preso há 97 anos em nossas gargantas.
Uh, Fernandão!/Foto: Jefferson Bernardes
Nenhum gol, duas expulsões
Entender as escalações que representaram Inter e São Paulo no Morumbi exige voltar mais quatro anos no tempo. Pentacampeão mundial em 2002, o Brasil do técnico Felipão surpreendeu a crítica esportiva, que muito desacreditava a Seleção Brasileira, na Copa do Mundo disputada em Japão e Coréia do Sul.
Armada no esquema 3-5-2, a Canarinho contava com os recuos dos alas Cafu e Roberto Carlos para ter segurança defensiva e máximo apoio pelos flancos. A formação marcou época e, como de costume em Copas do Mundo, ditou novas regras para o futebol. A decisão da Libertadores, é claro, comprova.
A seleção do Penta/Foto: Wilson Carvalho, CBF
Muricy escalou Rogério Ceni; Fabão, Lugano e Edcarlos; Souza, Mineiro, Josué, Danilo e Júnior; Leandro e Ricardo Oliveira. O desenho, é claro, reproduzia o 3-5-2. Contra o escrete paulista, Abel apostou no 4-4-2. Clemer, há quatro jogos sem sofrer gols na Libertadores, defendia a meta alvirrubra. Na defesa estiveram, Ceará, na direita, Bolívar e Fabiano Eller, na zaga, e Jorge Wagner, na esquerda. À frente, Tinga e Alex armavam. Fabinho e Edinho, também – mas ainda somavam obrigações defensivas. Completando a nominata, Sobis e Fernandão reeditavam, uma vez mais, poética dupla que marcou época no ataque colorado.
O clima no luxuoso bairro paulista era de festa. Com foguetes, sinalizadores e bandeiras, a torcida da casa empurrou o São Paulo nos instantes iniciais, apostando que um precoce gol poderia bagunçar a estratégia de Abel. Logo no primeiro minuto, Leandro foi lançado na área colorada e chutou cruzado. Mascada pela zaga, a bola morreu segura nas mãos de Clemer. O Inter respondeu pouco depois com Ceará. Aos 3, o lateral escapou em velocidade pela direita e cruzou fechado buscando Sobis. Antes dele, Ceni cortou em escanteio. O camisa 11 colorado teve boa chance na continuidade do lance, partindo, sobre a linha da grande área, da esquerda para o centro. Cruzado, o arremate explodiu na rede, por fora.
Sobis era, de fato, o mais insinuante colorado em campo. Estonteante nas cercanias da grande área, não hesitava em buscar jogo no campo defensivo, irritando a selecionável dupla de volantes paulistas. Josué, estressado, descontou sua indignação muito cedo, e acertou cotovelaço no jovem atacante alvirrubro. Com 9 minutos de partida, o São Paulo já tinha um a menos.
Numérica, a superioridade colorada também foi vista nas ações do campo. Entregue a escassos contra-ataques, o São Paulo apostava o pouco que tinha em Souza, ala-direita. Esperto, Abel respondeu dando liberdade para Jorge Wagner, que muito se somou a Alex na construção de jogadas pelo flanco canhoto. Livre, o lateral-esquerdo colorado recebeu passe milimétrico de Edinho, que tabelara com Sobis, e, de cara com Rogério, finalizou rasteiro. O relógio marcava 17 minutos, e o Inter tinha a primeira grande chance da noite!
Cedo na partida, Jorge Wagner assustou os paulistas/Foto: Divulgação
A resposta tricolor chegou aos 23. Ricardo Oliveira interceptou troca de passes do Inter na intermediária ofensiva colorada e escapou em velocidade. Pela esquerda, colocou na frente e, antes do bote de Bolívar, cruzou com curva. Pouco depois da marca do pênalti, Leandro dominou, deixou correr e, quando Clemer já caía no chão, finalizou. Fabinho, salvador, travou em carrinho milimétrico. Que início de final!
Dono da posse de bola, o Inter voltou a assustar aos 34. Da mesma posição que partira para marcar o primeiro contra o Libertad, Alex recebeu passe de Bolívar. Com espaço, colocou na frente e dispensou a necessidade de um segundo toque na bola. Viva, com efeito, a finalização de canhota levou muito perigo. Três minutos depois, Fabinho acertou Souza por cima e também recebeu o vermelho.
Dono dos holofotes, o camisa 21 do Tricolor teve boa chance após cavar a expulsão do volante alvirrubro, mas esbarrou em Clemer. Por fim, Jorge Wagner encerrou os melhores momentos de uma agitada etapa inicial aos 44, quando cobrou falta por cima do gol de Ceni. O branco do placar, embora não refletisse o ritmo intenso do primeiro tempo, era bem recebido pelo time de Abel Braga, confiante na possibilidade de, no jogo de volta, exercer a tradicional força colorada no Beira-Rio.
Para a história
Até 2006, a maioria dos colorados e coloradas lembrava do Morumbi como palco da maior exibição da história do Inter como visitante. Abrindo a disputa da semifinal do Brasileirão de 1979, o Clube do Povo esteve perfeito para atropelar o Palmeiras e, através de vitória por 3 a 2, trazer a vantagem para o Beira-Rio. Na ocasião, Falcão, cabeludo craque revelado pelo Celeiro de Ases, brilhou balançando as redes paulistas em duas ocasiões. Passados 27 anos, o povo vermelho seria brindado com nova exibição impecável no gigante templo do São Paulo Futebol Clube.
A tranquilidade exibida pela equipe colorada na noite de 9 de agosto de 2006 contrastava com o turbilhão de emoções encarado pelos presentes no Morumbi. Seguro, o time de Abel jogava empurrado por rica biografia, e já construía, durante o zero a zero, atuação que despertava orgulho no povo vermelho. Seguindo à rica este roteiro, o Clube do Povo saiu de trás com tranquilidade aos 8 minutos da etapa final, quando Bolívar acionou Edinho.
Cabeça erguida, o volante progrediu firme para invadir a intermediária rival. Com passadas largas, venceu os dois primeiros marcadores na velocidade. Livre, lançou Sobis quando sentiu a aproximação de Lugano, descontrolado. Ingênuo, o uruguaio deixou espaço na retaguarda tricolor, já esvaziada graças à genialidade de Fernandão. Aberto na direita, o camisa 9 prendeu Edcarlos e criou espaço para a infiltração de seu parceiro de ataque. Como uma orquestra afinada, tudo corria bem na escapada colorada.
Cabeludo craque revelado pelo Celeiro de Ases (um salve às coincidências), Sobis partiu para o mano a mano contra Fabão. Em velocidade, dominou com a direita e, usando da mesma perna, conduziu em linha reta. Para a esquerda, gingou o corpo, levando junto o zagueiro. Ganhava, então, ainda mais espaço para sua melhor perna.
O drible custou o equilíbrio do atacante, que por pouco não caiu. Genial, todavia, ele, que acabara de costurar no gramado as veias do continente que estava prestes a libertar, manteve-se de pé para invadir a área. Dentro dela, finalizou cruzado. Rasteiro. Para a eternidade. Inter na frente, e o setor visitante do Morumbi conhecia o DNA carnavalesco do povo colorado.
Gaúcho e colorado, colorado e gaúcho/Imagens: Rede Globo
Logo depois do gol, Abel mandou Wellington Monteiro a campo, sacando Ceará. Mantido o desenho, a troca deu ainda mais liberdade para a infernal dupla Alex e Jorge Wagner, uma vez que o substituto pela direita, habituado a atuar também como volante, tinha no comportamento defensivo um de seus melhores valores. Em dívida no marcador, o São Paulo precisaria se jogar ainda mais para o campo ofensivo, e estava claro qual corredor ofereceria ao Inter seus melhores contra-ataques.
Infiltrando pela esquerda, Tinga recebeu ótimo passe de Alex que, posicionado pela direita, cobria o avanço do companheiro. Livre, o camisa 7 dominou no momento do pique, mas Rogério, inteligente, deixou o gol para ficar com ela antes do cabeceio do meia colorado. Chance perdida para alguns, caminho indicado para outros. Três minutos depois, Eller desarmou Ricardo Oliveira e deixou ela com Jorge Wagner, que escapou em velocidade.
O camisa 23 cruzou a linha do centro do campo e acionou Fernandão. Posicionado como um volante após ter empreendido intensa perseguição a Ricardo Oliveira, o Eterno Capitão colorado esperou o aproximação de Mineiro e devolveu em Jorge. Fazendo as vezes de meio-campista, ele deixou, em profundidade, para Alex, então exercendo a função de ala.
Alex cruzou linda bola na segunda trave, com efeito, direcionada à nuca de Fernandão, que infiltrou em velocidade. Nas costas da marcação, o camisa 9 colorado testou para a frente, onde estava Tinga, pisando na pequena área. O meio-campista mandou, também de cabeça, arremate certeiro e forte, que explodiu no travessão. Exatamente em cima da marca do pênalti, Rafael Sobis impediu o picar da bola no rebote e finalizou colocado em direção às redes abertas. Pobre Ceni, bem que tentou, mas a noite não era dele. Era de Sobis, que marcava o segundo do Inter.
O segundo do menino de Erechim/Imagens: Rede Globo
Os dois gols de vantagem conquistados em 16 minutos de etapa final criaram um portal na cidade de São Paulo. A partida, antes disputada no Morumbi, passou a ocorrer no gramado do Beira-Rio. O som ambiente não deixava dúvidas.
Tomado pelo povo vermelho, o estádio via ecoar estridente “Vamo, Vamo Inter”. Dona dos mais altos decibéis, a torcida colorada construiu festa poucas vezes vista no sudeste brasileiro. A noite, indubitavelmente, entrava para a história.
Festa da torcida colorada/Foto: Divulgação
Os elogios tecidos ao São Paulo no alvorecer desta matéria não se fizeram presentes por acaso. Treinado por um gênio, o time da casa respondeu ao segundo gol colorado com a entrada de Lenílson, ofensivo meio-campista que substituiu Danilo. Logo depois, Júnior, primeiro dentro e depois fora da área, desperdiçou boas oportunidades. O que antes era uma goleada, consequentemente, voltou a tomar contornos de igualdade, afinal de contas, entusiasmada pela postura de seus atletas, a torcida do São Paulo passou a disputar o posto de local com a colorada.
Dentro de campo, a vantagem do Clube do Povo também conviveu com ameaços. Aos 21, por exemplo, Clemer operou grande milagre. Sedento por novo contra-ataque, o Inter deu o troco com Sobis. Após servir Alex, o camisa 11 viu Fernandão ser lançado na esquerda da grande área. Parcialmente cortado, o cruzamento rasteiro do camisa 9 voltou para o artilheiro da noite. De frente pra o gol, ele exagerou na força.
É preciso reconhecer a excelente atuação de Souza, o mais perigoso atleta do São Paulo. Aos 28, ele quase consagrou Júnior, mas o excelente cruzamento foi cortado por Wellington Monteiro. Cobrado o escanteio, o lance prosseguiu até Leandro receber bola na direita da intermediária e cruzar para Edcarlos, postado como um centroavante. Certeiro, o cabeceio morreu nas redes de Clemer. Jogo em aberto, mais uma vez.
No lugar do zagueiro artilheiro, que vinha jogando como atacante, entrou Aloísio, centroavante de origem. Ao mesmo tempo, o Inter contava com Índio, que substituíra, minutos antes do gol, Alex. Fechado com cinco atletas na primeira linha, o Clube do Povo ainda somava mais quatro no meio de campo, consequência da aplicação tática de Fernandão e Sobis, que revezavam no momento de recompor.
A consequência de toda a dedicação dos avantes colorados chegou aos 34, quando o até então incansável Rafael Sobis precisou sair. Exaurido após atuação do mais alto nível, deu lugar para Michel. Renovado, o talismã de Abel Braga dispensou os recuos de Fernandão, e exerceu, absoluto, a função de coringa entre meio e ataque.
“As dificuldades serão iguais ou maiores no próximo jogo. Conseguimos apenas uma pequena vantagem e vamos aproveitá-la da melhor maneira possível”
Abel após o jogo no Morumbi
Descansado na linha de frente, Fernandão criou, aos 36 minutos, oportunidade mágica para o Inter. Acionado por Tinga, prendeu dois marcadores, fez a parede e recomeçou com Jorge Wagner, que deixou de lado com Edinho. O volante disparou do círculo central e, mais uma vez imparável, só foi derrubado por carrinho violento de Fabão, já na meia-lua da grande área. Para o agressor, amarelo. Para o Clube do Povo, falta. Para Jorge, o lamento. A bola saiu alta demais.
Ricardo Oliveira, Lenílson, Richarlyson – alçado a campo na vaga de Leandro -, Souza e, inclusive, Bolívar, cortando cruzamento perigoso vindo da direita. Todos estes atentaram contra a meta colorada ao longo dos instantes que antecederam o apito final. Nenhum balançou as redes de Clemer. Aos 48, Jorge Larrionda encerrou jornada que até hoje segue interminável na nostálgica memória do povo do Inter. Em uma semana, conquistaríamos a América.
Heróis colorados comemoram muito a vantagem conquistada na partida de ida/Foto: Divulgação