O mais colombiano dos sacis
Originária das tribos indígenas localizadas no sul do Brasil, com destaque para a Região das Missões, a história do Saci narra um menino negro e brincalhão que adora pregar peças para enganar aqueles que cruzam o seu caminho. Reza a lenda que, para aprisionar o jovem do gorro vermelho, a pessoa deve arremessar uma peneira nos redemoinhos de vento deixados pelo sagaz perneta quando este se prepara para aprontar alguma de suas travessuras. Na sequência, para garantir que ele não voltaria a incomodar, seria necessário retirar-lhe o gorro e aprisioná-lo numa garrafa. Sorte a do Inter que esta parte do folclore brasileiro não parece ser muito conhecida no Uruguai. Pelo menos, foi esta a impressão deixada pelos milhares de charruas que se aglomeraram no Parque Central na noite de 27 de abril de 2006, há exatos 14 anos.
É bem verdade que na última vez que Inter e Nacional haviam se enfrentado antes de 2006 os uruguaios levaram a melhor. O que não os torna especialistas na cultura brazuca, uma vez que a derrota colorada na decisão de 1980 poderia muito bem ter passado por limitações do elenco vermelho. Limitações estas não técnicas, considerando que boa parte do grupo tricampeão brasileiro invicto seguia no Beira-Rio, mas, sim, culturais. Talvez faltasse àquele time, que parecia jogar por música, outros ritmos latinos mais acostumados à Libertadores do que a cultura brasileira, e que, misturados a esta, fariam aflorar todo o potencial de nossos costumes. Poderia, por exemplo, ser o caso do tango argentino, ou a milonga uruguaia. No confronto do século XXI, entretanto, o destino mostrou que estilo algum poderia ser melhor do que o tipo colombiano do ruque-raque, tão bem dançado por Rentería.
Wason Libardo Rentería Cuesta nasceu na cidade de Quidbó, localizada na região mais carente da Colômbia. Após se destacar vestindo a camisa do Boyacá Chicó, o atacante foi anunciado como reforço colorado em setembro de 2005, aos vinte anos de idade. Um dos destaques do Inter no segundo turno da histórica campanha no Brasileirão, encerrou a temporada com grande moral junto à torcida, principalmente por conta dos muitos gols decisivos que marcara. Foi em 2006, contudo, que a simpatia entre jogador e arquibancada evoluiu para uma verdadeira idolatria.
Em 2005, o atacante até já havia comemorado gols imitando o mascote colorado, segurando sua perna esquerda e saltando num pé só em frente às arquibancadas. Nada comparado ao que fez no dia 26 de março do ano seguinte, quando, após marcar o quarto gol do Inter na goleada de 6 a 2 sobre o São José, vestiu um gorro vermelho e colocou um cachimbo na boca, saltando apenas com a perna direita na direção da incrédula torcida. Deste momento em diante, as figuras de Rentería e do Saci passaram a ser indissociáveis no imaginário da Maior e Melhor Torcida do Rio Grande.
Ao mesmo tempo em que cativava por seu carisma, Rentería tinha participação destacada na fase de grupos da Libertadores. Segunda melhor campanha da fase de grupos, o Clube do Povo avançou para os confrontos eliminatórios com autoridade. No chaveamento, o colombiano brilhou contra o Pumas, no México, onde marcou um gol e deu assistência para outro na vitória do Inter por 2 a 1, de virada, e Maracaibo, equipe venezuelana derrotada por 4 a 0 no Beira-Rio, em partida que também contou com um tento e um passe para gol do atacante colombiano. Momentos que, embora grandiosos, em nada são comparáveis ao que estava por vir.
O adversário colorado nas oitavas foi o Nacional do Uruguai, equipe que já havia enfrentado o Inter na fase de grupos, quando foi derrotada pelo Clube do Povo por 3 a 0 no Beira-Rio, além de empate sem gols na capital uruguaia. Se as lembranças mais recentes se mostravam positivas, porém, a torcida vermelha não conseguia esquecer do traumático vice-campeonato da América em 1980, estando, portanto, receosa quanto ao confronto. Mesmo assim, mais de mil colorados e coloradas se deslocaram até Montevidéu para apoiar a equipe gaúcha na partida de ida.
Após um início de jogo aberto, com boas chances para as duas equipes, o Nacional abriu o placar com Vanzini, em forte cabeceio que Clemer não conseguiu defender. Apesar do placar adverso, o Inter não perdeu a calma depois do gol sofrido, e teve sua maturidade recompensada aos 45 minutos, quando Fabinho foi derrubado a centímetros da área adversária. Embora câmera alguma tenha flagrado, certamente o goleiro Bava rezava enquanto o árbitro contava os passos da barreira, sabendo que, em se tratando de Alex e Jorge Wagner, os dois atletas colorados que se preparavam para a batida, dificilmente teria chance de fazer a defesa – como de fato não teve. Em excelente cobrança, Jorge colocou a bola no ângulo, enquanto o goleiro uruguaio, ajoelhado, apenas lamentava a vantagem perdida. Fim de primeiro tempo, e o 1 a 1 no placar se mostrava muito interessante para a equipe gaúcha.
Até o momento, a campanha do Inter na Libertadores contava com aproveitamento de 100% nos jogos disputados no Beira-Rio, número construído através de dez gols marcados em apenas três partidas disputadas. Assim, um empate com gol marcado fora de casa parecia ser um resultado excelente. Abel, contudo, não pensou assim, e voltou do intervalo com novidades no ataque: no lugar de Rafael Sobis, entrou Rentería. Antes mesmo de completar trinta segundos em campo, o atacante colombiano já deu trabalho para a defesa uruguaia em perigoso chute com a perna esquerda, que passou perto do travessão. Assustada com o bom começo colorado, a torcida da casa atirou uma bomba na direção de Clemer, que precisou ser atendido por mais de dois minutos para então ser liberado a seguir em campo.
Apesar da pressão e violência dos torcedores locais, o Inter não se assustou, e seguiu chegando com perigo ao ataque. A substituição de Abel se mostrava acertada, com Rentería incomodando a zaga adversária. O atacante colorado estava à vontade, criando boas jogadas junto a Fernandão e Gabiru, flutuando entre os irritados defensores charruas que pareciam não saber como parar o saci.
Foi assim que, aos 18 minutos, o gol da virada chegou. Após interceptar cruzamento em sua área, Clemer repôs rapidamente, lançando Fernandão. A zaga do Nacional afastou parcialmente, mas a bola voltou para o Eterno Capitão colorado, que de cabeça ofereceu precisa escorada para Rentería. Já no seu primeiro toque na bola, com o pé direito, o atacante colombiano, solidário na fria noite de Montevidéu, superou o zagueiro Pallas dando-lhe um lençol. A bola caiu na entrada da área, à feição para a perna canhota do saci, que enquadrou o corpo e soltou uma bomba. Nesta, Bava até pulou, mas nem precisava. Preciso, o chute do camisa dezenove do Inter encobriu o goleiro para morrer no canto esquerdo da meta uruguaia. Golaço. Antológico. Epopeico.
Emoldurando a obra de arte que acabara de ser produzida pelo artilheiro colorado, surgia uma bandeira da Colômbia no meio da enlouquecida multidão que lotava o setor visitante. Por um momento, a América inteira reverenciava a genialidade do garoto nascido em Quidbó, e ele decidiu homenagear suas raízes, festejando o gol não com a fantasia de Saci, e sim com sua outra comemoração tradicional, o ruque-raque, dança que mistura a salsa com o ritmo da música das bruxas, crença muito presente na sua cidade de origem. Ao seu lado, boquiaberto com o que vivenciava, Fernandão apenas sorria, admirando a felicidade no rosto do menino Rentería.
De maneira estapafúrdia, o árbitro Ruiz Óscar Julián puniu Rentería com um cartão amarelo. Provavelmente Julián conhecesse a lenda do Saci, mas não por completo. Assim, pensando que o cartão poderia servir como uma peneira, advertiu o atacante pela travessura que ele pregara na casa dos outros. Não bastasse prejudicar o camisa dezenove do Inter, poucos minutos depois o árbitro voltou a amarelar o goleador colorado, desta vez por obstruir cobrança de bola parada do time uruguaio. Assim, o herói da noite saiu de campo expulso e exposto para uma torcida sedenta, disposta a fazer o saci pagar por tudo que aprontara. Objetos foram arremessados, e o atacante somente deixou o gramado, com o olho visivelmente machucado, após o policiamento intervir, inclusive isolando os perturbados torcedores da cerca da arquibancada.
Se engana, no entanto, quem pensa que o desconforto do Nacional passou depois da injusta expulsão e das barbáries cometidas por sua torcida. Em publicação no site do clube charrua ao fim da partida, Rentería era chamado de fanfarrão e palhaço, e sua mal-interpretada comemoração, condenada. O único ponto de lucidez na infeliz nota foi o tom aparentemente conformista quanto à provável eliminação, resultado confirmado na semana seguinte após empate sem gols que garantiu a classificação do Inter, conquistada graças ao folclore brasileiro, e colombiano, que exorcizou da história colorada um fantasma uruguaio. O sonho do título seguia cada vez mais vivo.