A vitoriosa trajetória de Guiñazú pelo Inter

Estádio Defensores del Chaco, 27 de julho de 2006, duelo de ida das semifinais da Libertadores. Transcorridos 34 minutos da etapa inicial, Índio corta cruzamento perigoso do adversário, mas a bola sobra, na entrada da meia-lua, com o camisa 17 do Libertad, que domina no peito e, já dentro da área, chuta com a canhota. Rasteiro, o arremate beija a trave de Clemer e cruza a extensão da meta. Os donos da casa ficam com o rebote e criam nova oportunidade, defendida pelo goleiro colorado. Perigo, definitivamente, afastado. Assim foi o primeiro capítulo da marcante história entre Inter e Guiñazú, o quase algoz vermelho.


A chegada ao Clube do Povo

Alguns meses depois, no dia 14 de junho do ano seguinte, há exatos 13 anos, Clube e atleta tornaram a se cruzar. Desta vez, em episódio feliz para ambos: a apresentação de Pablo Horacio Guiñazú como jogador do Sport Club Internacional. Aos 28 anos, o volante não escondeu a ansiedade em sua primeira fala à imprensa, destacando a vontade de retribuir, o quanto antes, toda a expectativa da torcida para com seu futebol e estrutura disponibilizada a ele pelo Colorado.

Um breve hiato, no entanto, retardou o primeiro ato oficial do novo casamento. Contratado do exterior, Guiñazú só poderia estrear com a camisa do Inter a partir de agosto, quando seria aberta a janela para transferências internacionais. Desta forma, restou ao atleta se preparar para, assim que legalizado, estrear – e como El Cholo se preparou, a ponto de logo adotar Porto Alegre não apenas como residência, mas também lar!

“Estou me sentindo em casa.

Fui muito bem recebido!

O pessoal na rua me reconhece

por causa da minha careca!”

Guiñazú, antes mesmo de estrear pelo inter

“Ele é muito dedicado. Algumas vezes temos até que pedir que pegue um pouco mais leve na intensidade, para que não acabe sofrendo uma lesão. É um atleta exemplar.” Com estas palavras, Flávio Soares, auxiliar de preparação física do Clube do Povo, definiu a intensidade dos treinos do argentino. Guiñazú, inclusive, não era o único sedento por ir a campo, e tinha sua angústia compartilhada pelos igualmente recém-contratados Magrão e Jorge Luís, lateral-esquerdo.

O esperado momento de estreia chegou no dia 5 de agosto, em duelo contra o Cruzeiro, fora de casa. De grande exibição, o argentino, vestindo a 11, sobressaiu-se na região central do campo, mas nem mesmo seu ímpeto foi capaz de conter os mandantes, que atuavam diante de um Mineirão cheio. Escore final, um injusto 3 a 2.

Guiñazú seguiu encantando a torcida ao longo de todo o semestre final de 2007, especialmente a partir da chegada de Abel Braga, no mês de agosto. Treinado pelo comandante vencedor de América e mundo na temporada anterior, El Cholo se provou extremamente polivalente, muitas vezes atuando na ala esquerda do 3-5-2, assim repetindo, com Alex, dobradinha similar à que o ídolo dos chutes precisos fizera, em 2006, com Jorge Wagner. Incansável, caiu como uma luva em engrenagem já existente, assim fascinando o povo vermelho, também por sua indescritível vibração e aguçada qualidade na afiada canhota.

Novos reforços, a exemplo de Nilmar e Sorondo, foram apresentados no Beira-Rio nas semanas seguintes à chegada de Guina, assim encorpando o elenco que se preparava para alcançar grandes feitos em 2008. O ano de estreia de Cholo chegou ao fim com o Inter classificado à Sul-Americana e Pablo Horacio conquistando, de vez, a paixão dos colorados.


A pré-temporada inaugural

Embora sonhasse em colher alegrias, dificilmente Guiñazú imaginava ser tão feliz quanto foi com a camisa do Clube do Povo. Apresentando exatos sete dias após a conquista da Tríplice Coroa, não demorou para levantar sua primeira taça com a camisa colorada. Pelo contrário, o troféu chegou ainda na primeira semana de 2008.

Estou encantado pelo Inter, de coração!

Quero retribuir todo o carinho.

Tenho certeza que ainda serei muito

feliz aqui!

GUIÑAZÚ, EM ENTREVISTA CONCEDIDA NO FINAL DE 2007

Internacionalmente reconhecido e admirado, o Colorado foi convidado para participar, no mês de janeiro, da Dubai Cup, torneio disputado por instituições de grande tradição que integrou a pré-temporada alvirrubra. O período de treinos foi iniciado ainda em 2007, no dia 26 de dezembro, uma semana antes do desembarque nos Emirados Árabes, realizado após viagem de grande estilo, como a imagem abaixo comprova.

A estreia na Copa aconteceu no dia 5 de janeiro, diante do Stuttgart-ALE, e foi encerrada com vitória por 1 a 0, gol de Alex. Apenas 48 horas depois, o Clube do Povo voltou a campo para, contra a Internazionale-ITA, disputar a finalíssima, também vencida pelo Alvirrubro, agora por 2 a 1, golaços de Fernandão e Nilmar. De sua parte, mesmo tendo deixado o campo lesionado, Guiñazú foi eleito, em enquete no site do Inter, o melhor da finalíssima, dando o tom do protagonismo que exerceria no ano que estava por vir.


O primeiro título estadual

Capaz de afastar o motorzinho colorado dos gramados, a contusão não pôde se considerar vencedora na luta contra o abissal preparo físico do argentino. Após breves semanas entregue aos cuidados do departamento médico, Guiñazú retornou à ativa antes do previsto e com sangue nos olhos. Sua primeira exbição depois da injúria, ocorrida no dia 10 de fevereiro, deixava claro o tamanho do problema que aguardava os adversários colorados. Impecável, atuou por 80 minutos na ala-esquerda e foi um dos destaques na goleada alvirrubra por 5 a 0 sobre o Brasil, em Pelotas.

Titular absoluto, Guina voltou aos gramados com a mesma competência que apresentara nos meses anteriores, oferecendo grande contribuição à notória campanha alvirrubra na primeira fase do Gauchão, encerrada com 32 pontos conquistados através de 10 vitórias, duas derrotas e mais um empate. Além do tradicional brilho nos desarmes e passes, contudo, o argentino também tratou de inaugurar, nas primeiras semanas de 2008, um raro instante artilheiro em sua carreira. Ainda em fevereiro, anotou uma pintura de perna direita na goleada de 4 a 0 do Clube do Povo sobre o Nacional-PB, na fase inicial da Copa do Brasil. Já em março, o tento, marcado em um irônico carrinho, teve como vítima o Canoas, em partida de abertura das quartas de final do Estadual.

O alto nível de exibições, é bom lembrar, não ficou restrito a Guiñazú, que teve seu brilho acompanhado por diversos companheiros, fato comprovado nas goleadas aplicadas sobre Paraná, por 5 a 1, na partida de volta das oitavas da Copa do Brasil, e Juventude, derrotado na finalíssima gaúcha por acachapante escore de 8 a 1. Para a decisão contra o Papo, inclusive, Cholo deu nova demonstração de sua obstinação ao ir e campo e atuar durante os 90 minutos somente duas semanas após ser submetido a uma artroscopia! A recompensa para tamanha garra, sempre acompanhada de grande qualidade, foi a inquestionável vaga na seleção do Campeonato. Aos poucos, o que poderia ser uma corriqueira paixão platônica tomava contornos de idolatria.


A mágica formação campeã continental

Um início de Brasileirão claudicante, seguido das saídas de líderes como Fernandão, Iarley e Abel Braga, ameaçou um ano que, desde seu alvorecer, prometia grandes feitos à torcida. Foi então que o Clube do Povo se reforçou, como que anunciando, para quem quisesse ouvir, que o recente campeão de América e mundo seguia buscando taças. Desta vez, com novos nomes. Entre eles, Guiñazú, que tinha seu desempenho reconhecido, inclusive, no principal escalão do futebol mundial.

Estou muito bem no Clube,

todos me tratam maravilhosamente.

Não troco grana nenhuma por isso,

estou muito à vontade e aqui vou ficar!

Guiñazú, ao anunciar sua permanência no inter

No início do segundo semestre, o argentino recebeu propostas do futebol árabe, sedutoras pelos altos valores envolvidos, mas prontamente rechaçadas pelo atleta, que se mostrava decidido a fazer história no Inter. Na mesma época, Guiñazú virou matéria no site da FIFA, sendo definido como ‘a alma do time colorado’. Denominação, diga-se, nada exagerada para o meio-campista, um carregador de piano, como diriam os antigos, mas que exibia qualidade rara para os que costumam ocupar a faixa de campo que lhe servia de casa.

Foi exatamente contando com este aguerrido pulmão argentino que Tite construiu, para o quarto e último trimestre de 2008, um dos maiores esquadrões do Inter neste século. Verdadeira seleção alvirrubra, era escalada com um losango no meio de campo, e encontrava no camisa 5, bem como no parceiro Magrão, alicerce perfeito para o trio ofensivo formado por Alex, D’Alessandro e Nilmar. À leveza dos avantes, o argentino respondia com a dose ideal de imposição física. Era, também, a experiência internacional necessária para um reformulado grupo, bem como o responsável por caprichosos desarmes que protegiam a forte defesa estruturada por Bolívar, Índio, Álvaro e Marcão. Em outras palavras, Guiñazú correspondia a um ingrediente chave na receita da Academia do Povo campeã da Sul-Americana.

No intervalo, vimos que o Guiñazú

estava muito desanimado pela expulsão.

Então, combinamos de dar algo a mais

para vencer por ele!

NILMAR, APÓS A PARTIDA DE IDA DA DECISÃO DA SUL-AMERICANA

Eleito o melhor jogador no Gre-Nal que serviu de estreia para o Colorado no torneio, ‘El Cholo’ esteve praticamente imparável ao longo da competição. Deixou de atuar apenas na partida de ida das oitavas, preservado, e na abertura das quartas de final, lesionado para enfrentar o Boca, no Beira-Rio. Além disso, o volante, que chegou a sofrer uma luxação no cotovelo durante a Sul-Americana, também foi desfalque para a finalíssima, consequência de injusta expulsão que sofrera durante a vitória colorada por 1 a 0 sobre o Estudiantes-ARG, em La Plata. A ausência, entretanto, em nada abalou a paixão da torcida pelo craque, que teve seu nome ovacionado antes do embate que consagrou o Inter campeão.


O capitão do centenário

Mais do que campeão, Guiñazú abriu 2009 como capitão. Posto histórico, em se tratando do ano de centenário do Internacional, que foi assumido pelo infatigável volante com naturalidade, soando como simples desdobramento na caminhada que vinha trilhando desde sua chegada a Porto Alegre, marcada por liderança e exemplo. Mais do que na braçadeira, a imagem de referência exercida pelo argentino podia ser atestada na capa de chuva que usava em todos os treinos realizados no verão, vestida com o único objetivo de aumentar sua resistência física.

Se em 2007 o encaixe entre Inter e Guiñazú fora quase instantâneo, de maneira ainda mais rápida aconteceu a consagração do ídolo como capitão. Quatro meses após empunhar a faixa, levantou a taça do Gauchão, título conquistado de maneira invicta e abrilhantado por gol do argentino na final, disputada contra o Caxias. Cholo anotou o quinto dos oito marcados pelo Clube do Povo, que sofreu apenas um para reeditar o escore da decisão da temporada anterior. Excepcional ao longo do torneio como de costume, foi escolhido, ao lado de outros seis companheiros, para a seleção do Estadual.

O troféu do Rio Grande foi o primeiro dos dois que Guiñazú ergueu na temporada – o outro foi da Copa Suruga. Formando, com Sandro, nova dupla na abertura do meio de campo colorado, encontrou rápido entrosamento com a jovem promessa, e assim foi escolhido o melhor volante do Brasileirão, prova do destaque que alcançou nas campanhas vice-campeãs nacionais em 2009. No campeonato de pontos corridos, ainda marcou, contra o Goiás, seu quarto (e último) gol pelo Clube do Povo.


Campeão da América

Prestes a disputar sua primeira Libertadores com a camisa colorada, Guiñazú iniciou o ano de 2010 sonhando, é claro, mas, principalmente, suando. Na formação de Fossati, o capitão cansou de se sacrificar pela equipe, atuando em diversas funções do meio de campo em decorrência das variações do comandante, que gostava de alternar a formação entre o 4-4-2, quando local, e o 3-6-1, nas partidas disputadas longe do Gigante.

“Sonho todos os dias em

levantar a taça da Libertadores,

mas agora é hora de trabalho.”

GUIÑAZÚ, NA PRÉ-TEMPORADA DE 2010

Classificado para a fase eliminatória do torneio sul-americano na liderança de sua chave, o Inter perdeu a invencibilidade que ostentara ao longo dos grupos logo no primeiro duelo de mata-mata. Dolorido, o revés por 3 a 1 para o Banfield foi respondido, por Guiñazú, com convocação à Maior e Melhor Torcida do Rio Grande, multidão tida pelo ídolo como capaz de, com sua energia, contaminar os atletas em campo. Ao todo, mais de 35 mil pessoas atenderam ao convite do argentino, lotaram o Beira-Rio e garantiram a vaga nas quartas da América!

A tranquilidade no caminhar de um capitão que objetivava apenas o triunfo

Contra o Estudiantes, Guiñazú teve exibição de luxo no gramado do Beira-Rio, sendo um dos grandes responsáveis pela vitória conquistada já nos minutos finais. Na Argentina, contagiou o elenco com seu espírito imbatível, áurea que foi fundamental para a classificação rumo às semis, conquistada nos minutos derradeiros através do esfumaçado arremate de perna direita desferido por Giuliano.

Se é verdade que o argentino chegou a ceder a faixa de capitão para Bolívar após a Copa do Mundo de 2010, também não se pode contestar o empenho do ídolo, que seguiu entregando tudo de si dentro de campo. Titular nas 14 partidas da campanha campeã, Guiñazú superou até mesmo as expectativas mais otimistas para continuar brilhando nas semis, contra São Paulo, e final, diante do Chivas. No seu melhor estilo de jogador incansável, disputou todas as 14 jornadas do Inter na competição, correndo mais de uma centena de quilômetros em campo, geralmente na luta por cada palmo do gramado, para se converter em um dos principais rostos do elenco bicampeão da América.


Novo ano, nova taça

Temporada na qual completou 200 jogos pelo Inter, 2011 também foi, para Guiñazú, um ano marcado por taças. Multicampeão, o argentino parecia não conceber a mínima possibilidade de passar 365 dias consecutivos sem levantar troféus. Logo em maio, vestiu a faixa de vencedor gaúcho, participando da última volta olímpica do Estádio Olímpico, tradicional casa de nosso rival.

O último time campeão no Estádio Olímpico

Foi em agosto, contudo, que o grande momento da temporada chegou. Lesionado, Guiñazú não disputou a primeira partida da Recopa, realizada no dia 10 de agosto, no Estádio Libertadores da América, contra o Independiente-ARG. Duas semanas depois, entretanto, o ídolo fardou sua camisa 5 e ajudou o Inter a virar o placar, aplicando 3 a 1 no ‘Rojo’ e garantindo o bicampeonato no torneio.

Elenco vencedor da Recopa Sul-Americana

No último trimestre da temporada, Cholo ainda formou, com Tinga, grande dupla de volantes, importante na boa campanha colorada no Brasileirão. Foi a partir deste momento, inclusive, que o argentino se consolidou como responsável pela abertura do meio de campo alvirrubro, exercendo a função de primeiro homem, no passado recente desempenhada por nomes como Edinho, Sandro e Wilson Mathias. Lado a lado, os motorzinhos da Libertadores de 2006 e 2010 garantiram vaga na competição continental da temporada seguinte, finalizando em grande estilo mais um capítulo vitorioso para o Clube do Povo.


O capítulo final

O último ano de ‘Cholo’ no Inter foi marcado por nova conquista, o Gauchão, seu quarto no Clube do Povo. Além disso, líder como sempre, o argentino também ajudou o Colorado a construir campanhas livres de maiores percalços ao longo de período no qual o Beira-Rio passou a acumular cada vez mais setores interditados, fruto da reforma com vistas para a Copa do Mundo do Brasil.

Igualmente em 2012, o ídolo superou a casa dos 250 jogos, aumentando e enriquecendo ainda mais sua vasta biografia com a camisa vermelha. As convocações para a Seleção, já presentes no passado recente, foram multiplicadas a ponto de, no final da temporada, Guina ser indicado, pela primeira vez em sua carreira, ao prêmio ‘Rei das América’. Craque!

Agora o Inter ganha

mais quatro torcedores:

eu, meus filhos e minha esposa!

GUIÑAZÚ, NA COLETIVA DE DESPEDIDA

A trajetória de Pablo Horacio ‘el Cholo’ Guiñazu nas cercanias da Padre Cacique foi encerrada no dia 5 de janeiro de 2013, antes mesmo do início da pré-temporada alvirrubra. Encarando problemas particulares, o ídolo teve seu pedido de desligamento do Clube prontamente atendido, em demonstração de gratidão do Colorado para com seu craque. Icônico camisa 5, o volante finalizou sua história no Inter concedendo emocionante entrevista no CT Parque Gigante.

O momento mais marcante de sua despedida, todavia, aconteceu longe dos microfones, quando foi ovacionado por centenas de colorados e coloradas que o aguardavam para um justo até logo. Somando 282 partidas disputadas, incontáveis milhões de gotas de sangue e suor despejadas, além, é claro, de uma cadeira cativa e perpétua no coração da Maior e Melhor Torcida do Rio Grande conquistada, Guina, Cholo ou ídolo, chame como quiser, foi preciso ao definir a eterna relação que levará junto ao Clube do Povo por toda sua vida. Paixão, esta, recíproca, compartilhada com uma multidão que jura amor eterno ao argentino que tanto honrou o manto alvirrubro. Salve, Guiñazú!

Tinga, teu Clube, do Povo, te ama!

Há exatos 10 anos, no dia 14 de maio de 2010, Paulo César, o Tinga, era oficialmente apresentado em seu retorno ao Sport Club Internacional. Vencedor na primeira passagem, o já veterano meio-campista voltava ao clube do coração disposto a seguir escrevendo rica história com o manto colorado após um hiato de quase quatro anos. Missão difícil, considerando o que escrevera na trajetória anterior, mas atingida com sucesso. Relembre, abaixo, a carreira do ídolo no Beira-Rio!

Tinga: colorado e campeão

Um craque nascido em berço colorado

Tinga chegou ao Inter com 26 anos de idade, já carregando o apelido em referência à Restinga. Tradicional bairro da zona sul da capital gaúcha, serviu-lhe de morada até o início da vida adulta, e, curiosamente, exibe muitas coincidências, em sua biografia, com o Clube do Povo. Afinal de contas, a região foi criada para servir de destino aos moradores da Ilhota, berço colorado, palco do Ground da Rua Arlindo – primeiro campo da história alvirrubra -, e área localizada na altura onde, atualmente, a Avenida Érico Veríssimo se encontra com a Praça Garibaldi e a Avenida Ipiranga.

No início da segunda metade do século XX, políticas higienistas expulsaram da Ilhota a população humilde, operária e boêmia que vivia no bairro, entendendo que, por sua localização central, a região poderia despertar grande interesse das classes mais abastadas de nossa sociedade. Desta forma, os legítimos habitantes da área, descendentes de Tesourinha, Sylvio Pirillo, Escurinho e outros, acabaram empurrados para a zona sul, onde ergueram a Restinga. Anos depois, no encerramento de 2004, mais um filho deste DNA efervescente e popular desembarcou no Beira-Rio.


Casamento iniciado com taça

Chegando credenciado por passagem pelo Sporting-POR, Tinga declarou, logo em sua primeira entrevista como atleta do Clube do Povo, o sentimento de gratidão pelo empenho do Colorado em recrutá-lo. “Eu quero jogar à altura do interesse do Clube, que há um ano tentava me contratar.” Mal sabia o meio-campista que os dois próximos anos seriam intensos, dramáticos e vitoriosos a tal ponto que, quando deixasse os arredores da Padre Cacique, já estaria eternizado como um ídolo alvirrubro.

Titular na campanha do título gaúcho de 2005, Tinga teve participação destacada na decisão do certame estadual. Na partida de ida, o meio-campista marcou o segundo gol do Inter, pegando rebote de bola que Elder Granja mandara no travessão tentando encobrir o goleiro. Decisivo, o tento foi o quarto do camisa sete no Campeonato, seu sexto no ano, garantindo ao atleta a vice-artilharia da temporada colorada até então.

Na finalíssima, disputada fora de casa, foi Tinga quem, com magistral cruzamento, serviu Souza para que o centroavante fizesse o segundo do Inter na prorrogação, encaminhando a vitória, por 2 a 1, e o título, quarto seguido no Gauchão. Tamanho protagonismo do atleta foi reconhecido com vaga na seleção do Campeonato, em premiação organizada pela Federação Gaúcha de Futebol (FGF).


A injustiça nacional

Tinga seguiu como um dos principais nomes colorados na campanha que levaria o Inter ao quarto título brasileiro não fosse o escândalo da ‘Máfia do Apito’. Integrante do ‘quarteto goleador’ do time de Muricy ao lado de Sobis, Fernandão e Jorge Wagner, o meio-campista viveu a temporada mais artilheira de sua carreira, muito por conta das cobranças dos colegas de elenco, como brincou em outubro daquele ano. “Fui me aperfeiçoando ao longo da carreira. Meu chute não é forte, por isso procuro colocar a bola, tirando do alcance do goleiro. Os companheiros até brincam que precisam assoprar lá de trás para a bola passar a linha do gol”

Capaz de tirar o sorriso do rosto do meio-campista apenas os prejuízos impostos por celeradas arbitragens ao Clube do Povo. Tinga, inclusive, foi símbolo do escândalo que teve no Inter sua maior vítima quando, na antepenúltima rodada, já ocorrida a anulação de jogos conduzida por Luiz Zveiter, o Colorado gaúcho, ainda com chances reais de título, foi até São Paulo enfrentar o líder Corinthians, no Pacaembu.

Aos 28 minutos do segundo tempo, com o escore indicando igualdade de um gol para cado lado, o camisa sete foi lançado na área em profundidade. Como sempre genial em suas infiltrações, adiantou-se aos zagueiros adversários e, logo no primeiro toque na bola, dominou fintando o goleiro Fábio Costa. Descarrilhado, o arqueiro corintiano atropelou o meio-campista com um violento carrinho. Pênalti claro, que o árbitro Márcio Rezende de Freitas não apenas deixou de assinalar, como também interpretou como simulação de Tinga, assim apresentando ao atleta o seu segundo amarelo no jogo, encerrado com o 1 a 1 no escore.


O brilho nos grupos, o drama nas eliminatórias

A segunda colocação no campeonato deu contornos negativos ao grande ano do Clube que, dentro de campo, fizera por merecer o título nacional e, também, escrevera bonita campanha na Sul-Americana, tornando-se a primeira equipe estrangeira a superar o Rosário Central, na Argentina, em partidas continentais, e sendo eliminado apenas para o Boca Juniors, futuro vencedor do torneio, nas quartas de final, encerradas com agregado de 4 a 2. Para a surpresa daqueles que esperavam que o abatimento fosse tomar conta do elenco colorado, contudo, a temporada de 2006 comprovou que aquele era um grupo formado por vencedores. Toda indignação e frustração foram convertidas em motivação por conquistas maiores. Referência entre os atletas tanto por sua liderança quanto pelo alto nível de futebol que apresentava, Tinga, escolhido o melhor segundo volante do Brasileirão, continuou protagonista mesmo após a chegada de Abel, que assumiu o comando da casamata alvirrubra no lugar de Muricy Ramalho.

Titular no vice-campeonato gaúcho, o meio-campista sobrou na fase de grupos da Libertadores, brilhando na histórica virada sobre o Pumas, armando a jogada do gol de empate após desarme magistral. Infelizmente, seu embalo foi contido por lesão sofrida em confronto contra o Maracaibo, válido pela última rodada do chaveamento. Grave, a injúria afastou Tinga dos gramados por mais de um mês entre abril e maio, assim tornando o atleta um desfalque para as oitavas-de-final e, também, a primeira partida das quartas, contra a LDU. Dramática, a situação foi agravada quando, no início do segundo tempo do duelo de volta frente aos equatorianos, o camisa sete voltou a se machucar. As consequências? Mais duas semanas de afastamento e ausência nas semifinais.


A decisão de Tinga

Pela primeira vez em 26 anos, a segunda em seus 97 de existência, o Inter confirmou, nos últimos instantes do dia 3 de agosto, sua classificação à final da Libertadores. Sedento por minutos em campo após ser desfalque em praticamente toda a fase de eliminatórias, Tinga voltou a ficar à disposição para os confrontos da decisão. Diferenciado por sua técnica, provou-se, na final, também um verdadeiro talismã, ocupando posição de destaque nos dois confrontos.

Se a primeira partida foi de Rafael Sobis, vale destacar que o segundo gol marcado pelo menino de Erechim surgiu após rebote de bola dividida entre Tinga e Júnior, espirrada na direção do travessão. O meio-campista colorado, colocando sua especialidade à prova, invadiu a área adversária em velocidade e recebeu excelente escorada de Fernandão. Por centímetros não bateu Rogério Ceni, mas, graças ao oportunismo do colorado e gaúcho artilheiro da noite, a oportunidade passou longe de ser lamentada.

A mesma chance criada a partir de assistência de Fernandão que parou na trave na primeira partida, balançou o barbante da goleira defendida por Ceni na finalíssima. O Eterno Capitão colorado pegou rebote de cabeceio por ele mesmo desferido, milagrosamente defendido pelo goleiro, e, da ponta esquerda da pequena área girou e cruzou bola baixa para Tinga, que precisou se abaixar e contorcer antes de empurrar para a meta. Gol. O segundo do Inter, comemorado de maneira tão efusiva que o meio-campista chegou a levantar sua camisa vermelha para revelar mensagem religiosa que carregava por baixo do uniforme. Advertido pelo árbitro, levou o segundo amarelo no jogo.

Coube ao Inter segurar os 30 minutos finais de partida com um a menos. Correndo por eles e por Tinga, os jogadores se defenderam com a tradicional alma colorada. O camisa sete, enquanto isso, rezava e chorava no vestiário vermelho. Seu sofrimento só acabou quando os massagistas Banha e Juarez, juntos do roupeiro Gentil, foram buscá-lo anunciando o final do jogo. Pela primeira vez em quase cem anos de história, o Inter era campeão da América, e Tinga tinha marcado o gol do título. Era herói, como merecia ser depois do absurdo vivido em novembro anterior, no Pacaembu.

“A festa está completa. Ganhamos o mais importante. Para mim, só faltava a Libertadores. O Inter é o time que eu torço, que meus amigos todos torcem. Sofri muito quando cheguei, pois fui formado no Grêmio. Mas sou torcedor do Internacional desde criança. Este sofrimento serviu de incentivo e, agora, nosso trabalho foi coroado com este título”, declarou o então campeão da América. O troféu erguido no Beira-Rio também serviu de ponto final para a primeira passagem do atleta no clube, visto que Tinga seguiu para o Borussia Dortmund após a inesquecível e infindável noite de 16 de agosto.

Tinga comemora o gol do título da Libertadores/Foto: Jefferson Bernardes/VipComm

Voltou para casa e foi campeão

Após quase quatro anos vestindo a camisa do clube alemão, suficientes para, passados 85 jogos e catorze gols, alçar Tinga ao posto de ídolo local, o meio-campista voltou para casa. Eufórica, a torcida colorada respondeu ao anúncio da contratação com grande entusiasmo, fanatismo que pôde ser percebido logo no desembarque do atleta no Aeroporto Internacional Salgado Filho, quando centenas receberam o velho conhecido com festa digna do craque que chegava.

Por se tratar de uma contratação internacional, Tinga necessitava esperar pela abertura da janela de transferências para jogadores vindos do exterior para ter sua situação regularizada e, assim, reestrear com a camisa vermelha. Os bons ventos sopraram na direção da Padre Cacique, com o prazo de inscrições antecipado para julho. Novidade cirúrgica, uma vez que possibilitou que o meio-campista entrasse na lista de atletas colorados que disputavam a Libertadores, competição que já vivia sua fase de semifinais.

Vestindo a camisa 16, Tinga atuou na segunda partida da fase semifinal e na finalíssima. Nesta, começou a jogada do primeiro gol colorado e quase se antecipou a Sobis para concluir cruzamento feito por Kleber. Mais uma vez, uma chance criada pelo meio-campista era aproveitada com muito oportunismo pelo atacante gaúcho. Novamente, o Inter era campeão. E Tinga, também.


Novo ano, novo troféu

As lesões se tornaram mais frequentes para o ídolo na temporada de 2011. A primeira aconteceu ainda em fevereiro, durante partida contra o Pelotas, no Beira-Rio, e afastou Tinga dos gramados por dois meses, período que englobou praticamente toda a fase de grupos da Libertadores e boa parte do Gauchão. Seu retorno aconteceu na semifinal da Taça Farroupilha, contra o Juventude, em partida na qual a estrela de ídolo colorado voltou a se fazer presente. De cabeça, o meio-campista marcou o gol da classificação para a final, completando cruzamento feito por Leandro Damião em jogada que contou com magistral lambreta do centroavante alvirrubro.

Tinga ainda atuou na final do turno e no primeiro jogo da decisão do Campeonato, apenas ficando de fora da finalíssima por suspensão devido ao terceiro cartão amarelo. Diferente do que o espetacular retorno poderia sugerir, entretanto, o ano seguiu repleto de percalços para o jogador, que perdeu boa parte do Nacional lesionado. Seu momento de maior destaque no Brasileirão aconteceu nas últimas e decisivas rodadas, quando passou a atuar mais recuado, abrindo a meia-cancha colorada ao lado de Guiñazú. Por ali, foi peça importante na conquista da vaga à Libertadores seguinte.

A temporada também reservou um título inédito ao ídolo: a Recopa Sul-Americana. Tinga enfrentou o Independiente, fora de casa, na primeira partida da decisão que consagrou o Clube do Povo bicampeão do certame continental. Além disso, ainda em 2011 o atleta participou da campanha do Inter na Copa Audi, torneio encerrado com o bronze para o Colorado.


O fim que repetiu o começo

Após lesão na pré-temporada, Tinga surgiu como elemento surpresa na escalação colorada para a partida de volta da pré-Libertadores de 2012, disputada contra o Once Caldas. Como de costume, marcou gol importante, virando o jogo para o Inter após completar excelente cruzamento de D’Alessandro. A partida acabaria empatada em 2 a 2, com classificação gaúcha, e o tento seria o último do camisa sete pelo Clube do Povo.

No Gauchão, o meio-campista foi peça frequente no segundo turno e atuou nas partidas de ida e volta da decisão, contra o Caxias. Com o título, o atleta se tornou tricampeão do torneio. A finalíssima, inclusive, foi partida final de Tinga com a camisa alvirrubra. Na semana seguinte, o ídolo rescindiu amigavelmente seu contrato e seguiu para o Cruzeiro.

Em Minas Gerais, Tinga conquistou o bicampeonato brasileiro. Também por lá, aos 37 anos, o craque encerrou, em maio de 2015, sua vitoriosa carreira. Confira a ficha técnica:

Posição: Meio-campo
Nascimento: 13/01/1978
Naturalidade: Porto Alegre (RS)

Clubes:
1997 – 1999: Grêmio – RS
1999: Kawasaki Frontale (JAP)
2000: Botafogo – RJ
2001 – 2003: Grêmio – RS
2003 – 2005: Sporting (POR)
2005 – 2006: Internacional
2006 – 2010: Borussia Dortmund (ALE)
2010 – 2012: Internacional
2012 – 2015: Cruzeiro

Títulos pelo Inter:
Libertadores da América: 2006 e 2010
Recopa Sul-Americana: 2011
Campeonato Gaúcho: 2005, 2011 e 2012.