A neblina de Quilmes
Diferente do que a invicta conquista colorada possa sugerir, a edição da Sul-Americana de 2008 não foi nada fácil. Pelo contrário, raras foram as ocasiões em que o torneio reuniu tantas equipes tradicionais brigando pelo título. Entre os semifinalistas, por exemplo, além do Inter estiveram River Plate, campeão do Torneo Clausura da época, Estudiantes de La Plata, que viria a conquistar a Libertadores no ano seguinte, e o gigante mexicano Chivas Guadalajara. O alto nível dos clubes, inclusive, tornava no mínimo provável que estes voltassem a se encontrar em um futuro não muito distante, brigando por outros títulos continentais.
Quis o destino que os argentinos do Estudiantes fossem os primeiros conhecidos a voltar a cruzar o caminho do Clube do Povo, desta vez nas quartas-de-final da Libertadores de 2010. E se o confronto de duas temporadas antes fora emocionante, se estendendo para além dos tradicionais 180 minutos para ser decidido apenas no segundo tempo da prorrogação, após Nilmar marcar o gol do título do Inter, o duelo disputado há exatos 10 anos, no dia 20 de maio, não ficou para trás.
Os truncados 90 minutos iniciais
O Inter chegou entre os oito melhores do continente depois de eliminar, nas oitavas de final, o Banfield-ARG, em confronto que teve seus últimos 90 minutos disputados no Beira-Rio. A emocionante classificação vermelha motivou a crítica esportiva a apontar o Colorado como um time em franca ascensão no principal torneio do continente. Para chegar às semifinais, contudo, seria necessário superar equipe tida como a melhor das Américas. Mais do que isso, o duelo de volta aconteceria na Argentina. Fazer o resultado no Beira-Rio, portanto, era uma obrigação, apesar do alto nível rival.
Diante de mais de 40 mil colorados e coloradas, Jorge Fossati mandou a campo, na noite de 13 de maio, o que tinha de melhor à disposição. Habituado a alterar a formação de jogos como mandante para partidas longe de casa, o uruguaio escalou o Inter no 4-4-2. Abrindo o escrete estava Abbondanzieri, contratado no início do ano com a responsabilidade de conferir experiência ao time que sonhava com o bicampeonato. Nei, Bolívar, Sorondo e Kleber compunham a defesa, sempre protegida pelos volantes Guiñazú e Sandro, entrosados desde a temporada passada. Na frente, D’Alessandro e Andrezinho tinham a missão de furar a linha de 5 defensores argentinos e municiar a dupla de atacantes formada por Walter e Alecsandro.
Duríssimo, o confronto se desenrolou marcado pela escassez de espaços. Rondando constantemente a área argentina, o Inter sofria para criar chances reais, ficando entregue a chutes de longa distância e bolas alçadas na área. Do outro lado, o Estudiantes apostava todas suas fichas em um possível contra-ataque letal armado pela genialidade de Verón, que também não era encaixado. O cenário emaranhado persistiu até os 20 da etapa final, quando Taison, endiabrado, entrou na vaga de Walter e deu novo ímpeto à linha de frente alvirrubra. A partir de então, durante 20 minutos Orión operou milagres, a arbitragem ignorou lances duvidosos e, ainda, Alecsandro balançou as redes, mas teve impedimento assinalado. O empate sem gols parecia inevitável, até que o centroavante colorado cavou falta na intermediária.
O relógio indicava exatos 46 minutos e 26 segundos quando Andrezinho levantou bola perigosa na área visitante. Açucarada, a redonda viajou precisa até a cabeça de Sorondo, que se atirou em obstinado peixinho na direção do pequeno retângulo platense. Fatal, o desvio do zagueiro impediu qualquer reação do arqueiro argentino, que, de joelhos, assistiu ao tento colorado. Inter 1 a 0, e a vantagem era nossa!
A epopeia em território hermano
O jogo de volta foi disputado no Estádio Centenário, localizado na cidade de Quilmes, uma vez que a casa do Estudiantes, em La Plata, passava por reformas. Enfrentando o atual campeão da América, o Inter sabia que, para triunfar contra um adversário temido por quase todo o continente, seria necessário pôr à prova a tradicional mística colorada. Exatamente por isso, quando os onze titulares de Jorge Fossati entraram em campo, a torcida pôde acreditar que aquela seria uma noite especial.
Por ironia do destino, como o Estudiantes tinha no vermelho a cor predominante de seu uniforme, o Inter não teve alternativa senão ir a campo todo de branco, assim como na decisão do Mundial. A sorte parecia abraçar a equipe gaúcha, fazendo sorrir a Maior e Melhor Torcida do Rio Grande, que lembrava dos feitos de Fernandão, Iarley, Gabiru e companhia. Ficava claro que, se os argentinos mereciam respeito e atenção, não menos importante era a história multicampeã do Inter. Se o acanhado estádio lotado e a camisa adversária assustavam, também aterrorizados os locais deveriam se sentir enfrentando o Clube do Povo do Rio Grande do Sul, que iniciou o duelo com Abbondanzieri; Bolívar, Sorondo e Fabiano Eller; Nei, Sandro, Guiñazú, Andrezinho, D’Alessandro e Kleber; e Alecsandro.
“Há de se enaltecer o elenco.
O Internacional cresce
em decisões!”
ANDREZINHO, DEPOIS DO APITO FINAL
Os primeiros minutos de partida, todavia, obrigaram a torcida colorada a abandonar a nostalgia das boas lembranças do passado, dando lugar ao nervosismo. O Estudiantes, incendiado por sua torcida, desde o início do jogo adotou postura agressiva e, regido por Verón, conseguiu abrir 2 a 0 antes dos vinte e cinco minutos do primeiro tempo. Como o resultado já garantia a classificação do time da casa, os argentinos passaram a cozinhar o jogo, seguindo à risca a cartilha ‘matreira’ que faz parecer que os hermanos nasceram prontos para jogar a Libertadores.
Mesmo com as mudanças do técnico Jorge Fossati, que deixaram o Inter mais ofensivo, o panorama da partida não foi alterado no segundo tempo. Os minutos passavam, a tensão crescia, e a classificação parecia cada vez mais distante. À exceção de falta cobrada por Andrezinho e de bom chute de Walter, que substituira Nei, o Colorado tinha dificuldades em chegar ao ataque.
O caldeirão de Quilmes fervilhava com a festa da torcida da casa, comemorando vaga que já parecia garantida. Os próprios jogadores do Estudiantes inflavam seus torcedores, que retribuíam acendendo cada vez mais sinalizadores. O goleiro Orión mal podia ser visto em meio à espessa nuvem de fumaça que partia da multidão localizada atrás de seu gol. Enquanto isso, Verón prendia a bola, cavando faltas e laterais, deixando o tempo passar. Aos 43 minutos, entretanto, La Brujita errou.
Embora fosse uma lenda viva, o capitão do Estudiantes não conseguiu superar a força da tradição colorada, que não deixaria passar impune sua disparate tentativa de imitar o que Iarley e Rubens Cardoso haviam feito com maestria no Japão quando, vestindo o mesmo branco que o Inter usava em Quilmes, prenderam o Barcelona em seu campo de defesa entre faltas, laterais e escanteios. Assim, restando menos de dois minutos para o fim do tempo regulamentar, a bola retornou à posse gaúcha, que tinha tiro de meta para Abbondanzieri cobrar.
O multicampeão goleiro lançou Walter, na esquerda da intermediária de ataque colorada. O centroavante matou a bola no peito e protegeu com o seu pé direito, esperando a aproximação de um segundo defensor adversário para, então, acionar Andrezinho. Com um giro perfeito, o meio-campista se livrou do primeiro marcador, ganhando espaço para pensar. Ao mesmo tempo, Giuliano percebeu uma lacuna na fechada defesa argentina e se projetou. Esbanjando talento, André deu assistência genial para o jovem camisa onze colorado. Neste instante, o tempo parou.
Eram cerca de 700 os colorados e coloradas presentes nas arquibancadas do Estádio Centenário. Outros milhões espalhados pelo mundo. Em comum, nenhum destes conseguia enxergar o que se passava graças à fumaça dos sinalizadores, que prejudicou a visão tanto dos que estavam na Argentina, concentrados atrás do gol oposto ao que Giuliano se preparava para fuzilar, quanto dos que acompanhavam pela TV, sofrendo com a prejudicada imagem das transmissões. Felizmente, a cegueira não afetou o jovem goleador colorado que, com o pé direito, chutou rasteiro. Como pôde, Orión tentou – e quase conseguiu – operar um milagre, mas não existia catimba ou bruxaria alguma que os argentinos pudessem fazer. De mansinho, chorosa, a bola entrou no canto. Gol do Inter, e o Centenário se transformava no Beira-Rio.
O apito final veio após três minutos de acréscimos que em nada alteraram o resultado da partida. Assim que o jogo foi encerrado, D’Alessandro e Walter dispararam em direção à torcida gaúcha, subindo no alambrado para comemorar junto às centenas de enlouquecidos. Desgostosos e irritados com a desclassificação, os atletas da casa provocaram uma briga generalizada no gramado, confusão que em nada diminuiu a alegria dos classificados, que transformaram o vestiário de Quilmes em um verdadeiro carnaval, festejando e cantando sem parar.
Quatro anos depois, o Inter retornava a uma semifinal de Libertadores. A exemplo do que ocorrera na fase de quartas de final, o novo adversário também não teria nada de inédito na história colorada. Agora, vinha o São Paulo, derrotado na final de 2006, prestes a ser novamente superado pelo Clube do Povo. Na decisão encontraríamos mais um velho conhecido, o Chivas, que em 2008 fora o rival na luta por vaga na final da Sul-Americana. Nenhum reencontro, contudo, teria acontecido não fosse o gol na nebulosa Quilmes. Nenhuma taça seria conquistada não fosse o peso da camisa vermelha – e branca -, respeitada em qualquer canto do continente.