A primeira temporada do capitão
Oficialmente anunciado como reforço do Inter há exatos 16 anos, Fernandão fez história com a camisa colorada desde o passo inaugural que deu no gramado do Beira-Rio. O primeiro grande feito alcançado pelo capitão no Clube do Povo, entretanto, não pode ser simbolizado através de placa ou troféu. Muito antes de vencer América e mundo, o goiano centroavante tratou de conquistar, com maestria, o coração da Maior e Melhor Torcida do Rio Grande.
Polivalente para desempenhar diversas funções na linha de frente colorada, Fernando ignorou tempo de adaptação, primeiro, e lesão, depois, para, em apenas quatro meses, finalizar sua temporada de estreia na Padre Cacique como artilheiro do ano alvirrubro. Em campo, o goleador somou atuações empolgantes a ponto de chegar ao mês de dezembro como um dos grandes responsáveis pelo entusiamo latente da torcida vermelha, que se preparava para entrar em 2005 certa de que, muito em breve, momentos especiais seriam vivenciados pelo Clube do Povo. Os números registrados pelo futuro ídolo, é bom que se diga, justificavam qualquer empolgação. Com 16 gols marcados em 31 jogos disputados, o camisa 9 foi uma das grandes notícias do segundo semestre do Inter em 2004.
O Gol Mil
Apresentado menos de duas semanas após o Clube do Povo conquistar o Tetra do Rio Grande, Fernandão precisou esperar quase um mês até ter sua situação regularizada para a estreia. Neste ínterim, o Clube do Povo trocou de técnico, com a saída de Lori Sandri para a chegada de Joel Santana, e acumulou insucessos no Campeonato Nacional. Foi, portanto, encarando cenário de grande pressão que Fernandão vestiu, no dia 10 de julho, a camisa do Inter pela primeira vez. Contra quem? “Apenas” o maior rival.
Após empate sem gols no primeiro tempo, Joel decidiu abrir o time, retirando o zagueiro Wilson para a entrada do cabeludo Fernando, que na ocasião vestia a camisa 18. Com a troca, Bolívar, que passara a etapa inicial na ala-direita, foi recuado para a zaga. Granja, por sua vez, passou a ocupar o corredor, enquanto o substituto ficou encarregado da armação, municiando a dupla de atacantes formada por Sobis e Danilo. Mudança ousada, mas que se provou correta logo aos oito minutos, quando Vinícius completou cruzamento de Alex e mandou de cabeça para as redes tricolores. Inter na frente no Gre-Nal 360!
Empurrado pela torcida e percebendo seu rival acuado, o Inter passou a ocupar ainda mais o campo de ataque, pressionando intensamente. Como consequência, aos 33 minutos Danilo recebeu a bola na direita, pedalou para cima da marcação e acionou o pivô de Fernandão. Do camisa 18 a bola seguiu até Marabá, que lançou Alex, livre.
Mais rápido do que os carros que corriam ao seu lado na Padre Cacique, o garoto paranaense deixou a marcação para trás com facilidade, ganhando espaço para usar sua famosa perna canhota. Com ela, alçou na área, buscando o segundo pau. Precisa, a bola foi cortada, parcialmente, pelo gremista Cocito, mas, para a infelicidade do marcador, a sobra ficou com Élder Granja, que teve tempo para ajeitar a redonda com carinho e levantar na marca do pênalti.
Gigante, Fernandão pareceu crescer ainda mais e, esbanjando presença de área, mandou testaço indefensável no canto da meta adversária. De tão forte, seu arremate não pôde ser acompanhado por câmera alguma. O que ficou registrado, em contrapartida, foi a explosão dos mais de 23 mil colorados e coloradas presentes no Beira-Rio, que vibraram muito com o gol de número 1 mil do maior clássico do Brasil. Um tento histórico, a princípio ignorado por seu ator.
No momento em que tocou o chão novamente e percebeu que marcara o gol, o abençoado artilheiro se emocionou e, tapando o rosto, ajoelhou-se no gramado. Certamente, a lágrima que teimava em escorrer não pôde ser contida quando ouviu Sóbis, eufórico, anunciar a importância do momento que protagonizara: “Tu marcou o gol mil do Gre-Nal!”. Inesquecível, o tento foi também o último marcado na gélida tarde de outono em Porto Alegre.
Final de turno complicado
A estreia de alto nível garantiu para Fernandão sua vaga entre os titulares. Apenas 72h após anotar o milésimo gol dos Gre-Nais, o craque atuou durante os 90 minutos de duelo contra o Guarani, em Campinas, encerrado com vitória dos mandantes por 2 a 1. Encarregado de municiar Sobis e Dauri, exerceu, na ocasião, a função de meia-atacante no 3-5-2 de Joel Santana, mesma posição que ocupou, desta vez jogando atrás de Rafael e Danilo, na goleada de 6 a 0 do Inter sobre o Athletico, ocorrida no dia 17 de julho. Diante dos rubro-negros, marcou, vestindo a camisa 8, seu segundo gol pelo Clube do Povo, além de oferecer, para Danilo, nome do jogo, autor de quatro tentos, sua primeira assistência com a camisa vermelha.
Fernandão, Rafael Sobis e Nilmar. Trio de ataque que, caso tivesse atuado por mais tempo junto, certamente figuraria entre os maiores da história do futebol, reuniu-se, pela primeira vez, no dia 20 de julho, data de duelo contra o Corinthians, no Pacaembu, encerrado com o placar inalterado apesar da grande pressão alvirrubra. Quatro dias depois, o futuro ídolo sofreu, para o Juventude, sua primeira derrota no Beira-Rio, escore de 2 a 1. Por fim, encerrando o sétimo mês do ano, nova derrota, agora por 2 a 0, diante do São Caetano, fora de casa, manteve o Clube do Povo estagnado na tabela.
Titular na 20ª rodada, Fernandão foi substituído no intervalo do confronto entre Inter e São Paulo, disputado no Gigante e finalizado com igualdade de um gol para cada lado. Na jornada seguinte, foi preservado de partida contra o Cruzeiro, no Mineirão, terminada com triunfo dos locais por 2 a 0.
Seu retorno aos gramados, em melhores condições físicas, aconteceu no dia 8 de agosto, quando o Inter recebeu a Ponte Preta. Indigesto, o time campineiro ampliou o jejum do Clube do Povo ao somar vitória por 2 a 1. O gol do Inter na ocasião foi marcado por Granja, após assistência de Fernando, que, embora tenha criado as melhores chances do Colorado na partida, não conseguiu impedir o novo revés. A sequência de insucessos alvirrubros chegou ao fim na rodada seguinte, última do primeiro turno, graças à vitória sobre o Paraná, no Durival Britto, placar de 2 a 1.
Os primeiros atos de genialidade
A abertura do segundo turno do Brasileirão foi extremamente positiva para o Clube do Povo. Recém-convocado para a Seleção Brasileira, o atacante Nilmar marcou dois dos quatro gols colorados sobre o Figueirense, destacando-se como o grande nome da partida disputada no Beira-Rio. Fernandão, que formou a dupla de ataque com o jovem artilheiro, também deixou o seu, anotando o segundo do confronto.
Na rodada seguinte, o Inter sofreu injusto revés para o Palmeiras, em São Paulo, sucedido por empate em 1 a 1 com o Coritiba, no Gigante, em confronto disputado no dia 22 de agosto. Contra o Coxa, o já camisa 9 produziu, aos 21 minutos do primeiro tempo, obra de arte que figura entre as mais bonitas de sua carreira. Após aplicar um lençol no marcador, o futuro ídolo não deixou a bola cair e emendou bicicleta perfeita, que morreu no canto das redes visitantes, não oferecendo qualquer reação ao goleiro adversário.
Inscrito com o número 9 na competição, Fernandão estreou com a camisa colorada em torneios internacionais no dia 25 de agosto, em Florianópolis, onde Inter e Figueirense não conseguiram alterar o marcador da partida de ida da primeira fase da Copa Sul-Americana. No final de semana seguinte, o Clube do Povo voltou suas atenções para o Brasileirão, visitando o Paysandu, em Belém-PA. Formando, junto de Sobis, o ataque vermelho, o capitão não conseguiu impedir a derrota, por 2 a 1. Revés, inclusive, também foi o resultado do duelo disputado quatro dias depois, este diante do Fluminense, finalizado em 3 a 1 para os cariocas. Como consequência, Joel Santana foi demitido do comando técnico alvirrubro. Em seu lugar, assumiu Muricy Ramalho, treinador de grande passagem pelo Beira-Rio em 2003.
Surge o matador
E como foi a tensa a reestreia de Muricy na casamata alvirrubra! O técnico, que muito em breve entraria em definitivo para a história como um dos principais comandantes da biografia do Clube do Povo, mandou o Inter a campo, para o duelo de volta contra o Figueirense, válido pela Sul-Americana, escalado no 3-5-2. Fernandão, como se tornaria regra a partir da chegada do novo comandante, esteve encarregado de armar a equipe. Melhor em campo, o Colorado deixou a vitória escapar no último lance da partida, quando André Santos empatou para os catarinenses e levou a decisão para os pênaltis. Na marca da cal, o capitão converteu o seu, Clemer brilhou, e a vaga foi conquistada!
Classificado no torneio continental, o Inter disputou as rodadas de número 29 e 30 do Brasileirão desgastado pela dramática vitória nos pênaltis. Assim, empatou sem gols com o Flamengo, em casa, e perdeu por 1 a 0 para o Goiás, fora. Resultados negativos, cobravam rápida resposta, que chegou no dia 15 de setembro, data da partida de ida da segunda fase da Sul-Americana, chave disputada contra o Grêmio.
Pela primeira vez na história, era disputado um Gre-Nal válido por competições internacionais, que teve o Beira-Rio como sede e Fernandão na figura de artilheiro inaugural, abrindo o placar após excelente cruzamento rasteiro de Felipe. Chiquinho, na etapa final, ainda marcaria o segundo e último do clássico.
O triunfo sobre o maior rival deu novo ânimo ao Clube do Povo, que, no final de semana seguinte, superou o Vitória, no Beira-Rio, por 2 a 1. Inspirado, Fernandão marcou os dois gols, o primeiro de cabeça, completando cruzamento de Marabá, e o segundo após grande jogada individual. Passados três dias, o Inter foi derrotado no Olímpico, por 2 a 1, mas fez a festa, garantindo vaga nas oitavas da Sul-Americana.
De volta ao Brasileiro, empatamos, na 32º rodada, com o Atlético-MG, placar de 1 a 1. Fernandão, em nova pintura, marcou o golaço de empate para o Inter, que comemorou muito o ponto conquistado no Mineirão, especialmente porque, no meio de semana, enfrentaria o Santos, time sensação do campeonato, líder e embalado por grande geração que encantava a América naquele início de século. Um dos principais nomes do Alvinegro era Elano, que abriu o placar em chute de perna canhota. Empurrado pelo Gigante, o Clube do Povo empatou, aos 12 do segundo tempo, com Vinícius, criando clima perfeito para a virada, que chegou, aos 19, em cabeceio meticuloso de Fernandão, completando cruzamento açucarado de Élder Granja.
O início da idolatria
Após duas derrotas consecutivas longe do Beira-Rio, a primeira para o Vasco, por 2 a 0, e a seguinte diante do Criciúma, com Fernandão marcando o do Inter no revés por 2 a 1, no dia 10 de outubro recebemos, no Gigante, o Cruzeiro, em partida de abertura das oitavas da Sul-Americana. Dando continuidade ao seu tradicional esquema 3-5-2, que tinha no capitão colorado o ponta-de-lança ideal, Muricy certamente esboçou grande sorriso quando, logo aos 19 da etapa inicial, seu camisa 9 abriu o placar, em bonito cabeceio. Leandro, ainda no primeiro tempo, empatou para os visitantes, mas Wilson e Chiquinho, já nos 45 minutos finais, garantiram a vantagem alvirrubra.
Nova vitória por 3 a 1, esta em partida da 36ª rodada do Brasileirão, aumentou a paixão de nossa torcida pelo camisa 9. Goleador, Fernandão fez dois no triunfo do Inter sobre o Botafogo, no Beira-Rio, assim chegando a 13 tentos marcados em 26 jogos disputados pelo Colorado. Nas graças da torcida, via o canto “Uh! Fernandão” se tornar uma espécie de hino no Gigante, sempre entoado por milhares de fiéis que semanalmente peregrinavam até a Padre Cacique esperançosos em assistir a mais uma exibição de luxo de seu capitão. Contra o time da estrela solitária, converteu de pênalti e, é claro, em preciso cabeceio.
Impecável, o Clube do Povo voltou a superar o Cruzeiro, desta vez por 1 a 0, no Mineirão, para garantir vaga nas quartas da Sul-Americana. Titular, Fernandão participou da jogada do gol de Sobis, que coroou feito especial para um Inter que voltava a sonhar com grandes feitos após anos de insucesso. Classificado, o Colorado voltaria a disputar, pela primeira vez desde 1993, quando participou da Copa Libertadores da América, um duelo válido por competição oficial contra adversários sul-americanos, no caso, o Junior de Barranquilla.
Especial, o mês de outubro também esteve marcado, a exemplo de seus predecessores, por vitória do Inter sobre o Grêmio, agora no Estádio Olímpico. Em uma rara atuação como atacante sob o comando de Muricy no ano de 2004, Fernandão, que vinha de dois gols marcados nos últimos três clássicos que disputara, comprovou, mais uma vez, sua vocação para carrasco de nosso rival. Dono do Gol Mil dos Gre-Nais e responsável por marcar o primeiro tento válido por competições internacionais na história do duelo, o camisa 9 fez, de cabeça, o segundo da vitória alvirrubra por 3 a 1, na Azenha.
A lesão que postergou a primeira taça
Completamente focado em superar o Junior de Barranquila, adversário nas quartas continentais, e apoiado nas duas vitórias consecutivas que conquistara pelo Brasileirão, o Inter poupou alguns atletas na dupla de partidas nacionais que antecedeu a abertura do duelo contra os colombianos. Fernandão foi titular nos dois reveses sofridos, o primeiro para para o Guarani, 3 a 1, e depois em jornada frente ao Athletico, esta fora de casa, terminada com o escore de 2 a 1. De sua parte, o camisa 9, sempre jogando pelo meio, não deixou de marcar gol, seu 15º pelo Clube do Povo, anotado em cobrança de pênalti contra os paranaenses.
Poucas foram as partidas tão aguardadas pela Maior e Melhor Torcida do Rio Grande no início do século XXI quanto o duelo contra o Junior-COL. Ocorrido no dia 3 de novembro, o confronto simbolizou o retorno do Clube do Povo ao seu tradicional posto de protagonista continental. Primeiro gaúcho a participar, marcar gol e chegar a uma final de Libertadores, o Inter sofrera, na década de 90, dolorosas frustrações que acabaram por afastá-lo da elite sul-americana. Uma grande atuação diante dos colombianos, portanto, significava afirmar, para todos as tribos latinas, que a Academia do Povo estava, enfim, retornando ao seu lugar. Responsável por liderar o Colorado nesta empreitada americana, Fernandão se provou, ainda no primeiro minuto de jogo, o capitão ideal para um novo ciclo alvirrubro.
Mesmo marcado por três jogadores, o ala-esquerda Chiquinho descolou, pela lateral do campo, cruzamento na medida para Fernandão. Na altura da marca do pênalti, nosso capitão subiu soberano, gigante como o Beira-Rio, e cabeceou respeitando o figurino. Picando, a bola voou como um foguete no canto direito da goleira do Gigantinho, fazendo explodir os quase 25 mil colorados e coloradas que ocupavam as arquibancadas do templo da Padre Cacique.
Poucos minutos depois da explosão com o balançar de redes, o Beira-Rio assistiu, incrédulo, à injusta travessura do ingrato destino. Após esticar a perna na tentativa de dominar lançamento forte, Fernandão foi ao solo acusando dores intensas na perna direita. Desta vez, não existia Gabiru no banco capaz de substituir o capitão com estrelismo equiparável ao do camisa 9, que precisou deixar o campo. Pior ainda, a lesão sofrida na vitória por 1 a 0 sobre os colombianos em nada se pareceu a uma cãibra. Pelo contrário, a injúria acometeu o músculo posterior da coxa direita, afastando o goleador dos gramados até o final da temporada.
Mesmo sem Fernandão, o Inter garantiu, após empate em 1 a 1 na Colômbia, a classificação para as semifinais continentais. Diante do temido Boca Juniors de Pato Abbondanzieri, Carlitos Tevez, Guillermo Schelotto, Martín Palermo e companhia, a ausência do capitão, contudo, foi sentida. Contra a melhor equipe do continente, faltaram ao Colorado dois gols para a conquista da vaga, que ficou com o time da Bombonera, futuro campeão da Sul-Americana. Eliminação dolorosa, pela certeza de que, com Fernandão, poderíamos ir mais longe, mas encarada com grande orgulho pelo povo vermelho.
Quase 50 mil colorados e coloradas encheram o Beira-Rio para a partida de volta das semifinais continentais, público que fez questão de aplaudir o elenco após o apito final, em clara demonstração de sintonia entre time e torcida, também entendida, por todos os presentes, como uma cerimônia de casamento. Naquele instante, cimento e grama concordaram que a história não acabaria por ali. Nossa casa voltaria a ser palco continental, e jamais aceitaria novo hiato de afastamento da elite latino-americana.
A conquista da vaga para a Sul-Americana de 2005, nas rodadas finais do Brasileirão, reafirmou o pacto, impondo a todos a mesma expectativa: o surgir do amanhã seria ainda mais radioso de luz do que o festivo passado alvirrubro. Novos feitos relevantes aguardavam o Clube do Povo do Rio Grande do Sul, que encontrara em seu camisa 9 o líder perfeito para ocupar o papel de guia. O povo vermelho tinha, agora, um capitão, e nunca mais eles seriam separados.